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terça-feira, 30 de março de 2010

Icebergue


I dwell in Possibility--
A fairer house than Prose--
- Emily Dickinson

There’s a possibility that all I have
is all I’m gonna get
- Lykke Li


    Sabes o que é um icebergue? É uma possibilidade. Pegas mal pela ponta e degelo. Ou pegas bem pela outra e enlevo. Enlevo é ter as barbas de Júlio Verne, descer ao centro da Terra e traçar 20 000 léguas submarinas. Enlevo é cantar assim



    Eu fui ao fim do mundo



    vou ao fundo de mim



    vou ao fundo do mar



    no corpo de uma mulher



    bonita



    Esta ponta de icebergue começa com três ingredientes: uma estação de caminhos-de-ferro na Rússia, um rapaz e uma rapariga.



    A cara dela diz nos o frio. Sente-se desamparada. Tempos houve em que bastou lutar para ter o que queria, mas agora falta algo. Nem tudo vem pela força. Esta manhã, acha-se velha de mais para isto. Começa a pensar que foi um erro. Deveria ter ido com os pais para a Quarteira. Praias apartadas em paredões, cafés e esplanadas, revistas, biquíni amarelado. Fugidios homens colibris que só lhe tragam o néctar. Não se olha ao espelho, olha-se à torneira aberta do lavatório, fita-a qual serpentina pelo cano abaixo, dilacerada, moída, dá por si de mochila às costas e na Rússia à procura de algo, algo que esbaforido foge pelo cano abaixo, em serpentina. Há velhos na estação, mas ela afoga-se mais que eles, o papel pardo, textura de ossos, savana da pele, tosse pergaminho, toda a areia do Sahara, mas onde há deserto, há oásis. O que há de belo num deserto é que, algures, esconde um poço. O poço não é ele. O poço é o encontro dos dois



    Ele nasce seis anos depois dela, na Alemanha, mas peneira Alexandria e o Nilo. Recorda da infância idas à pesca com o pai e correr o mundo de bicicleta. Ainda hoje corre mundo, mas de Transsiberiano e, paciente, pesca tatuagens. É artista de tatuagens. Desenha na flora e na fauna, traça a savana da pele. Tem o dom de falar mandalas e foi assim que despontou o amor em botão. O olhar de Matthias, decantando Marta, de turbilhão para constelação. Ela é a tatuagem em si inscrita, achou-a ali, ele que professa a geometria, toda a geometria é divina, que bela ela é, que bela é ela, em si inscrita, traçada, a sua mandala, esta mulher é divina, é geometria sagrada, quero-a em mim. Matthias é loiro, tem o cabelo rapado dos lados, espetado em cima e rastas na nuca. Tem piercings, mas nenhuma tatuagem. Até hoje, mantinha apenas uma vaga ideia dos contornos desejados. Eram os traços do rosto dela, da tinta que compõe Marta



    Marta ainda não deu por Matthias, só pela sua falta. Lê um livro espesso sobre Lisbeth Salander. Também ela sonha com uma lata de gasolina e um fósforo. Para deitar fogo a todos os homens-colibris, esses que odeiam as mulheres, esses que delas sorvem néctar. Marta não gosta do seu reflexo, por isso busca-se na torneira do WC. Abafada, põe os auscultadores e liga o discman. Só levou um CD, uma colectânea pessoal. Música para a animar, música para a adormecer. Música para abafar e música para chorar. Selecciona a faixa 06, da banda-sonora do filme da Amélie, mas as pilhas morrem ali. Típico. História da minha vida. E, saindo do WC, vê Matthias



    Matthias, enquanto espera que ela saia do WC, desenha já em si o rosto de Marta. Desenha o rosto dela no seu braço. Tornando-se numa mandala, tem visões de Alexandria e do Nilo. Ela sai do WC e ele traça sobrancelhas como cisne, como heras, como milhares de libélulas, um rompante de magnólias desabraçando-se sem fim



    Marta sai do WC, olha para Matthias e ouve a música do filme da Amélie. Que susto. Desvia o olhar e pára. Torna a olhar e recomeça. Vem de Matthias, a música vem dele, só se olhar para ele. Intrigada, demora nele o olhar e tem visões de um poço, da cortina de contas da cozinha e de um rompante de magnólias, desabraçando-se sem fim. O poço é o encontro deles.



    Marta deleita-se, recatada, faz que não é nada. O final do filme da Amélie, ela e ele felizes na lambreta. Marta e Matthias poderiam felizes no Transsiberiano. Ele traçando o rosto dela em si e ela evaporando em música, adorando o corpo dele. Ele feito mandala e ela beijinhos ou brisa. A seis passos de distância um do outro. A seis passos do amor que tudo consome ou a seis passos dum amor tranquilo. Um amor que corre o risco de permanecer num bloco de gelo. Tudo depende deles. A seis passos, a ponta do icebergue.



    Pegas mal numa ponta e degelo. Pegas bem na outra e enlevo. Enlevo é isto, é a possibilidade, um poço no deserto. A possibilidade do amor que tudo consome. A possibilidade de nele brotarem mandalas e, nela, beijinhos ou brisas. A possibilidade de um amor tranquilo. Se ela desse o primeiro passo, pegaria mal na ponta. Zangar-se-iam dali a seis meses via Skype, exigiriam coisas diferentes um ao outro. Ela ia chorar e tomar comprimidos na banheira, sem saber que ele tinha viagem marcada e quarto reservado em Sintra. Ela ia morrer de comprimidos, evaporar-se e nunca saber o que é extrair mandala da pessoa amada.



    Só que é ele que dá o primeiro passo e Marta sorri. Ela ouve agora uma voz, cantando em Matthias, uma voz que talvez seja a dela, porque canta, tal como ela cantava, tantas noites de Verão, rainha do palácio das correntes de ar, sozinha e sem braços, na varanda, sento-me nesta varanda vazia e relembro, rezando à Lua, cantando, pedindo Irmã Luna, eu só te peço a sorte, Irmã Luna, eu (só) quero a sorte de um amor tranquilo

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