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sábado, 18 de setembro de 2010

Ripe for the Picking - um "Palmeresque"



   
Shortly after the tragic death and premature death of Amanda Palmer, (the mysterious nature of which served only to add considerably to her previously acquired mystique), stories, poems and stream-of-consciousness writings began to appear, first in blogs and chat-rooms, then in other forms of internet based viral distribution formats such as auto-forwarded emails and Facebook applications etc.. These have come to be known as “Palmeresques”.




    You weren't ripe for the picking, 'Manda, and now you'll never be. And it burns me.


    Without the possibility of you, I just sit around my desk at the library, my hands tumbling and fumbling, awkward caged birds, feathery complaints, hearing the radiophonic crackles of the ghost of your voice, your feigned smile gliding mid-air, right in front of my face, cold sweats... I reach for your fingers but they're traces of incense, no bone to chew, no fingernails to bite of. And it burns, not you, not yet ripe for the picking, never


    I should of thought there would be someone else with their greedy lil' eye on you, some other hollow-chested being such as myself. In my lunch break, at each bite of my sandwich, I see his dishevelled hair partially covering blistering eyes, a rabid three-legged dog bashing your head in against a sink, slithing your throat with a x-acto blade, leaving your naked corpse in a Venus de Milo-esque pose right in some corner of the park. How unimaginative. Only to be found by a jogger and his husky dog. Clichéed as hell. I yawn at this poser, this eager excuse for a ripper. Men. Yawn. I'd have been different, 'Manda. You should know us, girls, are way more creative than that. I'm left wondering if he touched you and I push away such thoughts, disgusted. Lousy poser, jerk, fucker, I bet he licked your face, oh God, gross, barf, fucker


    Still, I play it back in my mind over and over again, the way I'd do it. I admit it's still a bit too unrealistic, but I rather dwell in fantasy, in possibility. That's why I like working in the library. So many psychowriters, books humming, the entire room humming with wounded and unfulfilled fantasies, like my hands, caged birds, flustered, impatient, rotting slowly in captivity, delirious


    You've just arrived in my hometown, you are going to play a show here and you're twitting, asking for a good place to get a haircut. I answer right away, blowing you away - ka-boom - with my refined sense of humour, my quirky and dumbfounding wit. You come alone. You meet me outside the library and I show you around, while I pretend to feel starstruck and tell you about the awesome underground art vibe of this town. While I lie through my teeth, you irradiate happiness. I pretend to be a part-time hair designer, experimenting with ink and brand-new european trends. We end up in my loft, you find my parakeets delightfully colouring and I stretch your head back, exposing your neck. I run my fingers through your hair, letting you feel warm water, you let out a moan, I reach for my scissors and


    I never got past this part, 'Manda. Don't laugh. It's just that the warm water, the parakeets, the evening sun bursting in through the window, the promise of possibility hanging in the air... I just wanted to breathe in that scene forever, you offering me your neck, tilting your head back, trusting, blindy trusting, glowing, you always glowing, me basking in what makes you, you


    That's why I'm different from that fucker, I didn't want you as a win, as a wife, my scissors wouldn't kill you, like some Sweeney Todd fanboy, I'd just, I don't know, release you, you and I, together, you with me. Lovers consume one another, don't they, only to be born again. Life can't be confined within these bodies, condemned to repeat itself in an infernal loop, we have to give it wings, not caged birds, scissors, cutting away the grey, this pounds of flesh, freeing us, 'Manda, you and me


    And that's why I miss you, 'cause you were making my hollow chest feel something, I don't know wether it's love, anger, lust, sadness, I don't know what it is, what to call it, that's why you weren't ripe for the picking yet, and he, that bastard, it burns me


    I'm sure without you this thing in my chest will wither away and die, unbaptized, uncommunicated, left caged in my chest, humming along with these books, these hellish flames confined in books, work of psychowriters too lame to act them out or maybe just victims like me, some loser, some pretense wannabe with complete disregard for art, cutting away flowers way too soon


    What shall I do now? I was hoping you'd tell me, 'Manda. I guess I was hoping that, one of these afternoons, I'd be greeted home by colourful parakeets and your glowing self. You'd sprinkle me with warm water. It's warm. You'd tilt my head back and expose my neck. You'd run the scissors through the line of my shoulders and make me moan. And you'd just release me, cut me loose with scissors, so that I could, I don't know, reach this thing you left in my chest, my once hollow chest, and, with you by my side, both us free and flying through the sky, I’d hold this thing in my hands like a baby and you would whisper its name in my hear,


    you and me as soft as doves, blood running through my loft, and I'd hold this thing like a baby and I’d finally know exactly what to call it

terça-feira, 6 de abril de 2010

A um Dedo, o Amor

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
- Sophia de Mello Breyner Andresen




    Sissa,

    Oxalá sintas o meu toque nesta carta. Suspiro que o papel se aflore na tua concha de mão. Qual paloma em corvo de tinta chinesa. Papel de arroz. Pincel e traços de tartaruga: casmurro e o vagar do amor. Sei bem o teu jeito atrapalhado de abrir cartas, sua pinguina de meias de flanela. Amaldiçoas o envelope, o carteiro, os correios… Rasgas meia carta e alumias doirados caracóis, ao sol cadente do entardecer. Abres a janela e as fadas do jardim cobrem-te de amendoeira. E se penso nos teus olhos, a pena detém se já aqui

    (Perdoa-me)

    Já não devo banhar-te assim, essa fonte de amantes secou e os meus lábios a estalar de barro

    (Esqueço-te)

    Devolvo-te os dias em que me emaranhaste na teia, pingada ao teu jeito de mel. Cortado o fio de Ariadne, perdido no labirinto, fere-me saber que nem dedal de mim queres

    Devolvo-te as noites em que a onda jasmim me respingava o peito. Devolvo-te aquela primeira noite em que te acompanhei ao carro. Chovia e tu sem guarda-chuva

    Chovia e eu sem guarda-chuva. Tive de deixar o carro ao pé do Café do Aires e, azar dos azares, do trabalho até lá ainda é um esticão. Lindo serviço e eu de saltos altos. Pensava em como a vida era injusta quando avistei um rapaz a olhar para mim. Vinha a pé e de guarda-chuva em riste. Ar circunspecto, debruçado sobre o MP3. Meti logo conversa. Corou um pouquinho, mas não fugiu. Atinámos. Ia para um atelier ali na Praça Fontes Pereira de Melo, mas fez um desvio para me levar ao carro. Não era muito conversador, mas tomei-o pelo braço e falou-me de ondinas dormindo nas gotas, bailarinas de vermute, desfolhadas nos socalcos. Se me perguntassem agora, nem sei bem… Não sei o que me encantou no seu jeito acanhado, barba mal feita e calças rotas nos joelhos. Nunca soube como, entre duas pessoas, surge o talvez do amor. Só sei que nunca disso fugi.

    Foi-me falando do seu curso de Cinema. Em breve, filmaria uma curta-metragem ao jeito de um realizador dinamarquês, sem actores a sério e com a câmara tremida. Quase via o filme projectado pelos prédios, como Neptuno a invocar ondas. Chegada a minha vez, contei-lhe que trabalhava para pagar o curso e queria ser psicóloga. Ou, quem sabe, jornalista ou cozinheira. Chegados ao carro, deixei que me convidasse para um café. Deixei que se arrojasse, tomando-me o número de telemóvel como uma praça de África. Deixei-o entrelaçar-se nos meus caracóis, menos húmidos com os seus dedos. Eram ternos. A névoa aumentava, a morrinha anunciando a presença da Deusa. Três ou quatro momentos. Um beijo despachado meu e um mais longo dele, no canto da minha boca. Safado. Por hoje, chega, pensei, mas nunca o repeli. Sempre me abri ao talvez do amor. Só que, com o Vasco… Não sei o que me encantou nele, mas foi algo como a chuva

    (Apaixonei-me por ti, Sissa, só pelo teu sorriso)

    como a chuva, repentino, forte, esbaforido

    (que me esmaga e me arrepia)

    como a chuva que quando se dá por ela, terminou

    (escorria uma lágrima-gotta)

    que quando vai, já foi

    e quando entraste no carro, escorria uma lágrima-gota. Arrancaste e eu fiquei ali à chuva, plantado e planado, de pés no chão, mas elevado pela onda jasmim, elevado como os amantes. É triste rever-nos no início quando já terminou o fim. E se penso nos teus olhos, a pena detém-se já aqui. Queria recontar-te a nossa história como a vivi. Depois da primeira noite, continuei a abeirar-me de ti e cuidava ser perfume. Guardava as tuas SMS até na caixa de entrada aparecer só

    sissa sissa sissa sissa sissa sissa

    Hei-de filmar lá uma curta, nos interiores e exteriores do que entre tu e eu foi um nós. Nos jardins da Sombreira, no Espaço R, na Rua da Malafaia… A tua pele, o teu bicho de seda. Porque em ti tudo era belo, belo de mais. Para ser verdade. Fere me saber que nem dedal queres de mim

     O Vasco começou a enviar-me SMS a toda a hora, com versos estranhos, a ligar-me bêbedo às tantas da madrugada e só saímos seis ou sete vezes, no máximo. Tomámos uns cafés, fomos ao cinema e saímos no aniversário dele. Fomos tomar um copo com os amigos ao R. Bem, ele fez cada figurinha! Empurrou a Tânia só para se sentar à minha beira e não me largava a mão, por muito que o afastasse. Um certo domingo, um mês e meio depois da noite à chuva, fomos os dois à Sombreira. Sorria como um pateta e dizia que era a mulher mais linda do mundo. É verdade que o talvez do amor ainda me soprava ao ouvido, mas abafado pela sua sofreguidão. Uma fome imensa cravada com garras negras. E eu, como era só eu, não lhe chegava nem queria chegar, pois, bem vistas as coisas, eu não era nada mais que eu.

    Mas o pior de tudo foi quando

    Quisera eu ser esta carta, para me segurares uma vez mais. Sei que estraguei tudo, como de costume

    Foi quando a minha avó adoeceu e ele não acreditou, disse que era mentira e insistia, tinha, precisava de me ver. A minha família quase de luto, eu chorava-me pela cama abaixo e ele a reclamar-me para si. Foi quando o vi como um monstro voraz. Um menino mimado, patético e vazado. Aconteceu o não do amor.

    Bem sei que estraguei tudo, não te tratei bem, mas juro que mudei, se pudesse voltar atrás…

    Devolvo-te os dias em que a onda jasmim me prometia pomos de ouro. Devolvo-te as noites em que o teu bicho de seda se demorava em mim, ora ameno, ora em dedos. Num frémito de dedos. Devolvo-te o que se não foi até agora,

    Há coisa de um ano, vi o Vasco na Rua da Malafaia. Acho que não me viu. Parecia feliz, com o nariz enfiado num livro e rodeado de amigos de cabelo comprido e calças de palhaço. Desviei logo a cara. É triste, mas só sei que sempre estive aberta e nunca disso fugi. Do amor, claro.

    nunca será

    Haverá mais noites à chuva e tomara que a Deusa me inunde com uma nova onda sublime, esse espanto de faíscas que de nós faz anjos felpudos. E quem sabe, Vasco, noutra vida, em que tu e eu renasçamos como gatos, talvez, talvez, quem sabe, essa ave sublime, nunca soube, gatos com bigodes, bigodes de gato, nunca soube porque acaba o amor

    E

    Sissa

    se penso nos teus olhos, a pena detém-se já

    aqui

terça-feira, 30 de março de 2010

Icebergue


I dwell in Possibility--
A fairer house than Prose--
- Emily Dickinson

There’s a possibility that all I have
is all I’m gonna get
- Lykke Li


    Sabes o que é um icebergue? É uma possibilidade. Pegas mal pela ponta e degelo. Ou pegas bem pela outra e enlevo. Enlevo é ter as barbas de Júlio Verne, descer ao centro da Terra e traçar 20 000 léguas submarinas. Enlevo é cantar assim



    Eu fui ao fim do mundo



    vou ao fundo de mim



    vou ao fundo do mar



    no corpo de uma mulher



    bonita



    Esta ponta de icebergue começa com três ingredientes: uma estação de caminhos-de-ferro na Rússia, um rapaz e uma rapariga.



    A cara dela diz nos o frio. Sente-se desamparada. Tempos houve em que bastou lutar para ter o que queria, mas agora falta algo. Nem tudo vem pela força. Esta manhã, acha-se velha de mais para isto. Começa a pensar que foi um erro. Deveria ter ido com os pais para a Quarteira. Praias apartadas em paredões, cafés e esplanadas, revistas, biquíni amarelado. Fugidios homens colibris que só lhe tragam o néctar. Não se olha ao espelho, olha-se à torneira aberta do lavatório, fita-a qual serpentina pelo cano abaixo, dilacerada, moída, dá por si de mochila às costas e na Rússia à procura de algo, algo que esbaforido foge pelo cano abaixo, em serpentina. Há velhos na estação, mas ela afoga-se mais que eles, o papel pardo, textura de ossos, savana da pele, tosse pergaminho, toda a areia do Sahara, mas onde há deserto, há oásis. O que há de belo num deserto é que, algures, esconde um poço. O poço não é ele. O poço é o encontro dos dois



    Ele nasce seis anos depois dela, na Alemanha, mas peneira Alexandria e o Nilo. Recorda da infância idas à pesca com o pai e correr o mundo de bicicleta. Ainda hoje corre mundo, mas de Transsiberiano e, paciente, pesca tatuagens. É artista de tatuagens. Desenha na flora e na fauna, traça a savana da pele. Tem o dom de falar mandalas e foi assim que despontou o amor em botão. O olhar de Matthias, decantando Marta, de turbilhão para constelação. Ela é a tatuagem em si inscrita, achou-a ali, ele que professa a geometria, toda a geometria é divina, que bela ela é, que bela é ela, em si inscrita, traçada, a sua mandala, esta mulher é divina, é geometria sagrada, quero-a em mim. Matthias é loiro, tem o cabelo rapado dos lados, espetado em cima e rastas na nuca. Tem piercings, mas nenhuma tatuagem. Até hoje, mantinha apenas uma vaga ideia dos contornos desejados. Eram os traços do rosto dela, da tinta que compõe Marta



    Marta ainda não deu por Matthias, só pela sua falta. Lê um livro espesso sobre Lisbeth Salander. Também ela sonha com uma lata de gasolina e um fósforo. Para deitar fogo a todos os homens-colibris, esses que odeiam as mulheres, esses que delas sorvem néctar. Marta não gosta do seu reflexo, por isso busca-se na torneira do WC. Abafada, põe os auscultadores e liga o discman. Só levou um CD, uma colectânea pessoal. Música para a animar, música para a adormecer. Música para abafar e música para chorar. Selecciona a faixa 06, da banda-sonora do filme da Amélie, mas as pilhas morrem ali. Típico. História da minha vida. E, saindo do WC, vê Matthias



    Matthias, enquanto espera que ela saia do WC, desenha já em si o rosto de Marta. Desenha o rosto dela no seu braço. Tornando-se numa mandala, tem visões de Alexandria e do Nilo. Ela sai do WC e ele traça sobrancelhas como cisne, como heras, como milhares de libélulas, um rompante de magnólias desabraçando-se sem fim



    Marta sai do WC, olha para Matthias e ouve a música do filme da Amélie. Que susto. Desvia o olhar e pára. Torna a olhar e recomeça. Vem de Matthias, a música vem dele, só se olhar para ele. Intrigada, demora nele o olhar e tem visões de um poço, da cortina de contas da cozinha e de um rompante de magnólias, desabraçando-se sem fim. O poço é o encontro deles.



    Marta deleita-se, recatada, faz que não é nada. O final do filme da Amélie, ela e ele felizes na lambreta. Marta e Matthias poderiam felizes no Transsiberiano. Ele traçando o rosto dela em si e ela evaporando em música, adorando o corpo dele. Ele feito mandala e ela beijinhos ou brisa. A seis passos de distância um do outro. A seis passos do amor que tudo consome ou a seis passos dum amor tranquilo. Um amor que corre o risco de permanecer num bloco de gelo. Tudo depende deles. A seis passos, a ponta do icebergue.



    Pegas mal numa ponta e degelo. Pegas bem na outra e enlevo. Enlevo é isto, é a possibilidade, um poço no deserto. A possibilidade do amor que tudo consome. A possibilidade de nele brotarem mandalas e, nela, beijinhos ou brisas. A possibilidade de um amor tranquilo. Se ela desse o primeiro passo, pegaria mal na ponta. Zangar-se-iam dali a seis meses via Skype, exigiriam coisas diferentes um ao outro. Ela ia chorar e tomar comprimidos na banheira, sem saber que ele tinha viagem marcada e quarto reservado em Sintra. Ela ia morrer de comprimidos, evaporar-se e nunca saber o que é extrair mandala da pessoa amada.



    Só que é ele que dá o primeiro passo e Marta sorri. Ela ouve agora uma voz, cantando em Matthias, uma voz que talvez seja a dela, porque canta, tal como ela cantava, tantas noites de Verão, rainha do palácio das correntes de ar, sozinha e sem braços, na varanda, sento-me nesta varanda vazia e relembro, rezando à Lua, cantando, pedindo Irmã Luna, eu só te peço a sorte, Irmã Luna, eu (só) quero a sorte de um amor tranquilo

quinta-feira, 25 de março de 2010

Heima


No fundo dos olhos trago
a estrada de Santiago
e o Cruzeiro do Sul


- Carlos Barbosa de Carvalho / Miguel Ramos


    Pediste que te mostrasse quem sou. Resmunguei, para quê, as tuas mãos já me conhecem de mais. Os teus lábios reescrevem-me, a cada dentada, sorvedouro, tinges-me de magenta. Não da cor magenta, mas do som magenta. Sussurra, mandrágora beladona tangerina Carolina. O gomo da Carolina.

    Quem eu sou é isto que vês, na cama a teu lado, tecendo poesia de travesseiro, fiando teus cabelos à lua, ora cresce ora mingua. É domingo deixa-me estar, ao domingo o corpo ancora-se para a alma o alcançar. Não vês a tua alma a pôr as contas em dia, em cálculos de ábaco?

    Insistes, afinal és mulher. A verdade é uma: não te posso mostrar quem sou. A razão é várias

    Repara em mim, a brilhar aos lampejos da Fontana di Trevi, de gelatto a escorrer-me pela mão, stracciatella, sou as Vespas das ruas de Roma, atravesiamo, deliciado pelos trinados italianos

    toti tutiti tapopi labuti buona sera bela grazimili chau nono presto laminestra

    ainda hoje creio que os gelados são italiano condensado, enrolo-o na língua e faço hmmm

    Atenta, sou o sobretudo preto por entre a tormenta de neve. É Novembro, o mês da morte, e ando perdido em Suomënlinna, ao largo de Helsínquia. Quero ribombar os canhões ou despir-me num vendaval sob o céu pintalgado, sempre negro. Por cima, as auroras boreais, por baixo, os mil lagos gelados. Os gnomos loiros que por mim velam, acodem me para a sauna. Cerveja, mergulho com os patos e sono de kahvi e pulla. Chamava-lhe baverite, à princesa dos gnomos. Nascia quando era sempre Sol.

    Nunca mais reencontrei esta ruela, para onde fugi do Museu de História Catalã. Sentei-me num barril de esplanada, onde e eu os meus partilhámos tomaca e sangria. Deus baptizou-me aí, a chuva arrasava o alpendre de hortelã, mas ninguém arredou pé. Porque amigos. Amigos querem-se mais em risos. Esventrámos as vísceras de Barcelona e fomos dar a uma igreja. Enquanto fumavam, entrei. Era um baptizado e, agora ungido, abençoei a menina. Fiz o mesmo em Estocolmo, aos canais. Agnus Dei que limpa o pecado do Mundo.

    Rendido, fora do tempo e do mundo. Sou nada na imensidão agreste, pés plantados nesta paisagem lunar, enegrecida de cinzas vulcânicas. A areia negra, um mar contrário ao mar, um punhado de não sei que aves, o contrário de gaivotas. Aves islandesas, suponho. Há uma escarpa talhada de rochas. As montanhas são tronos de gigantes. Fantasio as noites de Inverno, não é de estranhar que acreditem em fadas. O coração desta ilha é um icebergue, cabelos de fiordes, o céu pesaroso. A Dëtifoss devolveu-me à minha condição original, de bicho humano, humilde, adivinhando o Céu. A barbatana de baleia riscou a superfície e fui rebento. Num bar de Reiquejavique, uma mulher bonita de mais para ser tão simpática. Fomos a banhos à Lagoa Azul, cristal enevoado e odor a enxofre. Queria inspirá-la para dentro de mim, mas de imensa não cabia. Se fechar os olhos, ainda a consigo cheirar, quase que sinto, quase que

    Não fiques com ciúmes. Era o que te queria fazer ver. Não te posso mostrar quem sou, pois estou espalhado. A minha alma desfez-se e paira nos sítios onde fui feliz. Se fores a Caminha, verás que ainda lá flutuo, no dia em que te conheci. Venho ensonado da tenda e, à beira-rio, o Alex apresenta-nos, és a Carolina. Morena. Olhos verdes. Morena/tudo o que vale a pena. Comias cerejas e admirei me de engolires os caroços. Brilho. Aconteceu. Brincos de cereja e gomos de Carolina. Bella. Bela bobupi.

    Entende, não importa que fragmentos, porque me acolheste e resido em ti. Heima. Ítaca. O meu lar. Domingo, as almas fazem contas à vida e nós desaguados. Corpos e profusão de cerejeira. Se o meu sangue não me engana/havemos de ir a Viana. Heima. Ítaca. Ver o mundo e, Morena, por fim, desaguar nos teus braços.

terça-feira, 16 de março de 2010

A Rosa Lobato de Faria, no seu aniversário

Quero dar-te a coisa mais pequenina que houver

bago de arroz grão de areia semente de linho

suspiro de pássaro pedra de sal

som de regato

s coisa mais pequena do mundo

a sombra do meu nome

o peso do meu coração na tua pele

- RLF



Amei-te com as mãos, as mesmas com que te digo adeus

-RLF

     A Rosinha na Estação de Campanhã, alfazema com toques de garça, a fúria de lenço branco e lilás, um assomado vendaval, eu atarantado, feito ogre, com receio de a quebrar se lhe tocasse, e a Rosinha, de cristal



    - O André é tão grande



     revejo-a flor de cristal visto que a minha mãe não permitia sequer ao vento que com crueza a afagasse. A minha mãe e a sua infinita nobreza, a minha mãe alva e lilás, a Rosinha conheceu-a num jantar e sentiu o odor a flores, quais flores? Não me lembro. Digamos cleostópomis ou vilandeiras ou abrântemas. Cleostópomis, sentiu o odor a cleostópomis. Era uma noite quente, talvez de Maio ou Junho, fica Junho. Em que terra? Sesimbra, que tal Sesimbra. Em Sesimbra, a Rosinha abeirou-se e ter-lhe-á dito já sei que gosto de ti, mas, de início, noutras palavras, já sei que vilandeiras de si, porque tudo em ti é grão e reluz, porque a tua língua é alva e lilás, porque não guardas o coração em linho, mas antes o levas em estandarte, porque me faz falta a luz e agonio de sede, da sede da tua nobreza, do teu coração em estandarte, sei que somos irmãs, e já nada disso dito em colher de prata, nada dito em abrântemas, somos irmãs e rimos, entrelaçadas, como as das mitologias, emboscadas, que baptizam estrelas, irmãs do fundo



    E, depois disso, uma tia, uma tia de flor de cristal, parecida com outra, mas de estratosferas estrambólicas, com paninhos de porcelana e espírito bravio, fulgor de Sandokan, com mãos de origami, talvez debrum, carmim, que me afagava em orvalho



    - Meu querido



    e eu feito ogre, trangalhadanças, com receio de a quebrar, tentando um carinho, nunca tinha conhecido uma pessoa da realeza, aquele seu porte, austeridade de doce chá, mas não era só isso, havia mais e só o descobri no que ficava, no que ia ficando



    - Adeus, Rosinha, eu cliostópomis vilandeiras e abrântemas de si



    Ficando os livros, os manjares, feitos de ervas e jasmim e aromas que não há, o pão da Avó Açucena e, para a sobremesa, as delícias do sensus, de lábios, de coxas e seios, de rosa, de mulher rosa e eu a reler a capa para ver se a autora era mesmo a Rosinha, falando de mamilos morenos, da fome dos homens, do sal, dos prazeres da pele, do sensus, do bicho de seda, da mulher rosa, da rosa da mulher, dos homens, da nossa fome, a Rosinha não, o narrador autodietético, e eu a reler a capa para ver se era mesmo a Rosinha, as palavras agradando ao meu bicho de seda, ainda hoje, ele me recita



    Primeiro a tua mão sobre o meu seio/depois o pé – o meu – sobre o teu pé/Logo o roçar urgente do joelho/e o ventre mais à frente na maré



    na calada da noite, nos pinhais do nosso bravio, de onde se plantam naus, e ele que nem é dado a versos, não, ele mora em pinhais, bravio, asperge toques, em peles morenas, salgadas, do mar, ventres, porque essa mulher, ai essa mulher, pinhal bravio, destila lava e rubor, funcho e liláses, essa que bamboleia a praia, essa de mamilos morenos, essa que te suga, o canto, sal, rosa, e eu envergonhado, a reler a capa para ver se era mesmo a Rosinha, que me dizia por carta



    - Meu querido



    Guardei-a tão bem que nem sei onde pára, mas recordo bem a mensagem era, ipsis verbis,



    (a Rosinha amava latim, perguntando se eu amava latim e eu distraído, ainda lá atrás, a demorar-me na mulher da praia, talvez me dedicasse ao latim se não houvesse tantas mulheres bamboleando, se do pinhal bravio não se fizessem naus)



    e era, ipsis verbis, rosa, rosae, se bem me lembro,



     - Meu querido



    (naus ad rosam)



    e foi isso que me ensinou a escrever, foi isso que me ensinou a viver, Rosinha, que tudo o que se diz, destilado, por mais cheirosas que sejam as cliostópomis, as vilandeiras e as abrântemas, que tudo se filosofa pedralmente em



    - Meu querido



    e era isso que lhe queria dizer, hoje, no dia do seu aniversário. Dizem que morreu, dizem nas notícias, e eu que mau gosto, que ofensa, são crendices, não acredito, porque quereriam as notícias saber da minha tia, a minha tia disfarçada de senhora, mas antes uma mulher que bamboleia a praia e cuja mão no meu rosto, que se vai da lei da morte libertando, mais que os versos, o carinho que deu à minha mãe, mais que os livros, se sustentam, irmãs de mitologia, baptizando estrelas, rindo traquinas, numa noite de Junho, fica Junho, na noite em que eu nasci e alguém me aspergiu, sorrindo



    - André, meu querido



    se vai da lei da morte libertando, filosofando pedralmente, o amor, o sal e tudo o mais a que se brinda, o vinho que nos desfaz ogres, o vinho com que se brinda e se diz, com o pensamento mais elevado, o sentimento mais sublime e a palavra mais clara Eu gosto, Rosinha, o vinho com que se brinda e diz, a uma voz, revira-se a maré e eu, feito nau, torno a gostar de si




    e a Rosinha, de mão dada ao Kiki, a mandar-me beijos e dizendo André, não leve a mal se nos cruzarmos na rua e não der por si. É que estas carcaças quebradiças, que verá arrastando-se pela rua, não passam das âncoras de dois anjos que planam à altura dos prédios, desfiando as noites para as bordarem em amoras, encarnadas e sumarentas, a mancharem-nos a pele de criança.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Por Quem a Luz Alumia

Para Leandro











Não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti.

- John Donne






May it be a light to you in dark places, when all other lights go out.

- JRR Tolkien









    De todo o amor de que se compõe o céu: gosto muito de todos vós e não fiqueis em cuidados de mim,



    (Se me emudeço, se me quedo, se me alastro, se me agasto. A jusante, se me deponho, a montante, se me consolo. Se nas margens me converto, se nas pedras me tatuo. Não penseis e ai Deus se verrá cedo, nem nas faces de alvor, nem no olhar manso, nem ai Deus se verrá cedo, lembrai-vos só de Sião, nem ai Deus)



    peço-vos, não fiqueis em cuidados de mim.



    (Fui deitar-me em verdes prados, mas que me caia a vista, que me coza o sangue, se me esquecer de si, Mãe, que me salgue a pele, que me verme a língua, que me abrase os olhos, que me sopre o peito e a vela se apague, Mãe, se me esquecer, que me sopre o peito e a vela se apague, Mãe, se me esquecer de si)



    E, de todo o amor de que se compõe o céu, não me obrigueis a falar,



    (Só quero pensar no lugar que era meu à mesa, das meias quentes da salamandra, da coalhada a colheres de açúcar, do Natal em que o frio era bom por se falar mal dele, o primo a troçar que preferia ir à Missa da Galinha e eu a rir-me por imaginar o senhor padre a dizer o mistério da fé e saltava uma galinha cá-cá-rá-cá-cáaaa, o senhor padre a dizer cá-cá-rá-cá-cáaaa e a galinha a dizer o mistério da fé)



    não quero falar, não sei falar



    (a minha ânfora escaqueirou-se, partiu-se, caiu, rebolou para onde ninguém me podia chegar, partiu-se, caiu, e eu não tinha cajado para ir ao monte, tanto queria ir ao monte, sonhava galgar montes com cajados, gigante, eu gigante, eu com pele de azulejo e todos espantados a olhar para cima, eu a matá-los a todos, fulminante, eu a galgar montes, reluzente, resplandecente, e a Mariana a olhar, pele de azeitona, um jeito de mão no cabelo, eu a matá-los sem ter a Mariana de dizer seus anormais, deixem-no, deslarguem-no, um jeito de mão, azeitona, o mistério da Mariana, um beijinho só)



    e nem tenho voz, acolheram-me já sem voz, nem unhas, nem cabelo, nem gelatina dos olhos



    (no fundo uma carcaça, joga-se fora como o lixo, sobra um peito e a vela, essa por muito que vente, só se me esquecer de si, Mãe, não fique assim, só porque não me conseguiu chegar, só porque rebolei, partiu-se, caiu, e não havia mão que



    no fundo algo que nem merece, não fique assim, ponho-lhe a vela no colo, o peito no colo, a Mãe sossegue e veja se cheira mais a si, cheira tão bem, não gaste mais daquele perfume que a Madrinha lhe deu, não arqueie a mão e não faça perfume para a mão nem a cruze com a outra)



    apenas um peito e uma vela



    (que lhe coloco no colo, não chore, Mãe, gasta a pele do rosto, vincada de nervos, a gelatina dos olhos, só é pena não me pousar a cabeça no ninhinho, lembra-se, Mãe, o ninhinho entre o ombro e o pescoço, a Mãe deitava-me lá a cabeça e eu já na altura a provar o amor de que se compõe o céu)



    uma vela e um peito,



    (a verdade é que me racharam a ânfora, não partiu-se, caiu, e a verdade é que fico com pena, nunca chegarei a ser homem, nem a dizer ao Lourenço, sabes, filho, preferia antes ir à Missa da Galinha, e o seu neto a rir-se por imaginar uma cambada de galinhas a pedir a salvação, uma galinha gulosa a comer as hóstias todas, ele a pedir ninhinho à Mãe derivado ao frio do voltar para casa e a Mariana, amorosa, jeito de mão, pingo de oliva, a aninhá-lo, uma prenda no leito, um anel de és tu, a noite fria, mas boa por se falar mal dela, mas boa por se viver sob as estrelas, um caldo à mesa, uma prenda no leito e um anel de és tu, afinal ficam para outro, para mim não, nunca, jamais)



    que coloco no seu colo



    (sem voz, falo-lhe por música, pelo quente, pelo que se assemelha a nuvens que de tão inchadas alimentam rios, galgando montes, galgando a América dos filmes de tiros, os tiros sou eu de azulejo, gigante fulminante, a matá-los a todos, a alimentar os rios, galgando, um cajado, avistando o mar)



    à falta da cabeça no ninhinho,



    (e em chegando ao mar, Mãe, em lá chegando, que cavalos são estes que fazem sombra no mar, cantávamos nós nas janeiras, esses cavalos dizem-me elas, estas fadas, dizem-me eles, nem sei, serão o mistério da fé, cantávamos nós nas janeiras, e seguirei cantando assim, se escutar bem o seu colo, se escutar bem o que digo, não gaste desse perfume, por muito que vente, a vela, por muito que vente, o peito, nunca me hei-de esquecer de si, de como na terra o amor de que se compõe o céu, na terra e no céu, um beijo de mim, de mim para ti, cá te espero, o mistério da Mãe, o mistério)



    Mãe.