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terça-feira, 6 de abril de 2010

A um Dedo, o Amor

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
- Sophia de Mello Breyner Andresen




    Sissa,

    Oxalá sintas o meu toque nesta carta. Suspiro que o papel se aflore na tua concha de mão. Qual paloma em corvo de tinta chinesa. Papel de arroz. Pincel e traços de tartaruga: casmurro e o vagar do amor. Sei bem o teu jeito atrapalhado de abrir cartas, sua pinguina de meias de flanela. Amaldiçoas o envelope, o carteiro, os correios… Rasgas meia carta e alumias doirados caracóis, ao sol cadente do entardecer. Abres a janela e as fadas do jardim cobrem-te de amendoeira. E se penso nos teus olhos, a pena detém se já aqui

    (Perdoa-me)

    Já não devo banhar-te assim, essa fonte de amantes secou e os meus lábios a estalar de barro

    (Esqueço-te)

    Devolvo-te os dias em que me emaranhaste na teia, pingada ao teu jeito de mel. Cortado o fio de Ariadne, perdido no labirinto, fere-me saber que nem dedal de mim queres

    Devolvo-te as noites em que a onda jasmim me respingava o peito. Devolvo-te aquela primeira noite em que te acompanhei ao carro. Chovia e tu sem guarda-chuva

    Chovia e eu sem guarda-chuva. Tive de deixar o carro ao pé do Café do Aires e, azar dos azares, do trabalho até lá ainda é um esticão. Lindo serviço e eu de saltos altos. Pensava em como a vida era injusta quando avistei um rapaz a olhar para mim. Vinha a pé e de guarda-chuva em riste. Ar circunspecto, debruçado sobre o MP3. Meti logo conversa. Corou um pouquinho, mas não fugiu. Atinámos. Ia para um atelier ali na Praça Fontes Pereira de Melo, mas fez um desvio para me levar ao carro. Não era muito conversador, mas tomei-o pelo braço e falou-me de ondinas dormindo nas gotas, bailarinas de vermute, desfolhadas nos socalcos. Se me perguntassem agora, nem sei bem… Não sei o que me encantou no seu jeito acanhado, barba mal feita e calças rotas nos joelhos. Nunca soube como, entre duas pessoas, surge o talvez do amor. Só sei que nunca disso fugi.

    Foi-me falando do seu curso de Cinema. Em breve, filmaria uma curta-metragem ao jeito de um realizador dinamarquês, sem actores a sério e com a câmara tremida. Quase via o filme projectado pelos prédios, como Neptuno a invocar ondas. Chegada a minha vez, contei-lhe que trabalhava para pagar o curso e queria ser psicóloga. Ou, quem sabe, jornalista ou cozinheira. Chegados ao carro, deixei que me convidasse para um café. Deixei que se arrojasse, tomando-me o número de telemóvel como uma praça de África. Deixei-o entrelaçar-se nos meus caracóis, menos húmidos com os seus dedos. Eram ternos. A névoa aumentava, a morrinha anunciando a presença da Deusa. Três ou quatro momentos. Um beijo despachado meu e um mais longo dele, no canto da minha boca. Safado. Por hoje, chega, pensei, mas nunca o repeli. Sempre me abri ao talvez do amor. Só que, com o Vasco… Não sei o que me encantou nele, mas foi algo como a chuva

    (Apaixonei-me por ti, Sissa, só pelo teu sorriso)

    como a chuva, repentino, forte, esbaforido

    (que me esmaga e me arrepia)

    como a chuva que quando se dá por ela, terminou

    (escorria uma lágrima-gotta)

    que quando vai, já foi

    e quando entraste no carro, escorria uma lágrima-gota. Arrancaste e eu fiquei ali à chuva, plantado e planado, de pés no chão, mas elevado pela onda jasmim, elevado como os amantes. É triste rever-nos no início quando já terminou o fim. E se penso nos teus olhos, a pena detém-se já aqui. Queria recontar-te a nossa história como a vivi. Depois da primeira noite, continuei a abeirar-me de ti e cuidava ser perfume. Guardava as tuas SMS até na caixa de entrada aparecer só

    sissa sissa sissa sissa sissa sissa

    Hei-de filmar lá uma curta, nos interiores e exteriores do que entre tu e eu foi um nós. Nos jardins da Sombreira, no Espaço R, na Rua da Malafaia… A tua pele, o teu bicho de seda. Porque em ti tudo era belo, belo de mais. Para ser verdade. Fere me saber que nem dedal queres de mim

     O Vasco começou a enviar-me SMS a toda a hora, com versos estranhos, a ligar-me bêbedo às tantas da madrugada e só saímos seis ou sete vezes, no máximo. Tomámos uns cafés, fomos ao cinema e saímos no aniversário dele. Fomos tomar um copo com os amigos ao R. Bem, ele fez cada figurinha! Empurrou a Tânia só para se sentar à minha beira e não me largava a mão, por muito que o afastasse. Um certo domingo, um mês e meio depois da noite à chuva, fomos os dois à Sombreira. Sorria como um pateta e dizia que era a mulher mais linda do mundo. É verdade que o talvez do amor ainda me soprava ao ouvido, mas abafado pela sua sofreguidão. Uma fome imensa cravada com garras negras. E eu, como era só eu, não lhe chegava nem queria chegar, pois, bem vistas as coisas, eu não era nada mais que eu.

    Mas o pior de tudo foi quando

    Quisera eu ser esta carta, para me segurares uma vez mais. Sei que estraguei tudo, como de costume

    Foi quando a minha avó adoeceu e ele não acreditou, disse que era mentira e insistia, tinha, precisava de me ver. A minha família quase de luto, eu chorava-me pela cama abaixo e ele a reclamar-me para si. Foi quando o vi como um monstro voraz. Um menino mimado, patético e vazado. Aconteceu o não do amor.

    Bem sei que estraguei tudo, não te tratei bem, mas juro que mudei, se pudesse voltar atrás…

    Devolvo-te os dias em que a onda jasmim me prometia pomos de ouro. Devolvo-te as noites em que o teu bicho de seda se demorava em mim, ora ameno, ora em dedos. Num frémito de dedos. Devolvo-te o que se não foi até agora,

    Há coisa de um ano, vi o Vasco na Rua da Malafaia. Acho que não me viu. Parecia feliz, com o nariz enfiado num livro e rodeado de amigos de cabelo comprido e calças de palhaço. Desviei logo a cara. É triste, mas só sei que sempre estive aberta e nunca disso fugi. Do amor, claro.

    nunca será

    Haverá mais noites à chuva e tomara que a Deusa me inunde com uma nova onda sublime, esse espanto de faíscas que de nós faz anjos felpudos. E quem sabe, Vasco, noutra vida, em que tu e eu renasçamos como gatos, talvez, talvez, quem sabe, essa ave sublime, nunca soube, gatos com bigodes, bigodes de gato, nunca soube porque acaba o amor

    E

    Sissa

    se penso nos teus olhos, a pena detém-se já

    aqui

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