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segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

La Llorona

Gracias a tu cuerpo doy por haberme esperado 
tuve que perderme pa’ llegar hasta tu lado 
-- Lhasa de Sela

Every hair in your head is counted 
you are worth hundreds of sparrows
-- Sparklehorse

1.

Tudo está repleto de nada, do vagar baço dos velhos. O nevoeiro afirma-se tão presente que se assemelha a chuva, sem lamento parada no tempo, uma onda em exposição, um amontoado de gotas que só se contrariadas por um descuido de vento formarão poças no chão, acamando folhas, só assim bela a lua cheia, luzidia num reflexo de poças, no caudal dum leito grumoso. Telma caminha numa redoma de nuvens, em vez de neve de calçada, e os farrapos de luz diluem-se, arrastados pela humidade que aumenta e anuncia vida vegetal, odor a musgo, saber ancestral
Por caminhar assim, numa praia fluvial da sua meninice, de cabelos mortos compridos e mãos esgravatando o leito do rio, por sangrar dedos descarnados, Telma roga
Se centenas de pardais viessem
Telma teima
trazer-me o céu de Cuba
Telma roga a Ana Mendieta que por ela fale e nela ponha as palavras,
Só calco o socalco, pontapé à ponta do pé
as palavras e o entendimento
Ana Mendieta é minha Pastora, nada me faltará
De dia, recorte de ondulação numa praia fluvial da meninice, as folhas de madressilva salpicadas pelo vento primaveril, medronhos até aos joelhos, bichinhos carpinteiros
De noite, Telma sepulta os pés na lama e a lua cheia reflectida. Na poça bruxuleante dos socalcos. Quisera ser tragada pela terra, quisera antes ser vinhas. Chegada a altura, seria decepada e esborrachada, fermentando no lagar, desenfeitada e assente, alheia a quem a tragasse, uma espécie de amor, união
Se eu provei do vinho novo
Provocaria calor nas costas de um homem chamado Firmino, rubor nas faces peludas. Telma feita vinho, implicando gargalhadas numa tasca de província, abrindo paixões numa noite de chuva. De Verão. As mesas fervilhantes de risos, de anéis de gamela, caroços de azeitona, cascas de tremoços, cordas de chouriço. Telma feita vinho e o vinho feito sangue a correr pelas veias do Firmino
fui a folha solta a bailar ao vento, fui raio de sol no firmamento
 Mena leva o lixo lá fora e a chuva faz-lhe sapateado no rosto. Mena sorri e relampeja o canino afiado, lembrando o quarto-minguante. Abre o contentor do lixo e tapa o nariz para não lhe adentrar sujo. De um dos sacos pinga-lhe sumo de lixo no avental. Está tão cheio que de lá caem peles de bacalhau. Mena recorda a mãe dizendo Come as peles do bacalhau para te crescerem os peitos, dizia-lhe a D. Filó, agora lá dentro a mandar o Saul e o Martinho para casa
- Ide para casa para as vossas mulheres, passais tanto tempo aqui que qualquer dia enfeitam-vos a testa
Mena dá conta de fumo de cigarro nas traseiras. Chuva sapateado. Tabaco de enrolar. Os cabelos singularizados na testa do Firmino, os olhos ávidos em comparação. Ela conhece aquele gosto. Um canino afiado, lembrando o quarto‑minguante, a arranhar o lábio do homem. Um arrojo. A mão do Firmino, hábil no tabaco de enrolar, sentindo-lhe o pulsar dos peitos, mamas crescidas a peles de bacalhau, uma espécie de amor. Telma espumando-se pelos veios do Firmino, Telma feita vinho, vinho feito sangue, correndo pelos veios do Firmino de encontro aos lábios da Mena, arfar, e num feliz assomo, arribando-se, e assim acabou-se, Telma feita amores perros
Mas não é esse o sonho que Ana Mendieta vê para Telma. Telma sente‑o
- Se os meus sonhos fossem bons para mim, não teria dedos descarnados de sangue nem cabelos mortos compridos,
Telma só lavra o ventre por ter lido no pólen que Ana Mendieta sabe de cor quantos cabelos lhe brotam da cabeça
Telma só lavra o ventre por
- Mesmo com asas posso deitar-me de costas em lençóis garridos, elas amansam como os peitos da Mena ante a mão do Firmino, como os meus olhos ante flocos de pardais, valho centenas de pardais, li-os no pólen, gotejando ao contrário, da Terra para o Céu,
valer centenas de pardais e por rogar a Ana Mendieta que lhe ponha na boca as palavras,
- Talvez seja lá, no sítio onde a Terra e o Céu se beijam, seja lá onde moro, donde provenho e aonde devo tornar
as palavras e o entendimento
É isto que Telma incensa ao caminhar à noite pela praia fluvial da sua meninice. De cabelos mortos compridos e mãos esgravatando o leito do rio, os dedos descarnados de sangue em busca dos filhos
- Sigo-los buscando, eu sou como a malagueta verde: picante, mas saborosa
afogados e mortos, os filhos, presos no leito do rio, anunciando vida vegetal, um saber ancestral
- Por que me sinto perdida, Ana Mendieta, por que caminho sem alumiar à frente, salvo a luz que eu incenso, enganando-me a mim mesma, onde ficam os lençóis garridos, dos amantes, errantes, onde a Terra e o Céu se beijam, o pólen silente, derramando-se ao revés, centenas de pardais, as minhas espaldas dotadas de penas, de asas, que se amansando nos lençóis, pela urgência de beijos, o assomo do Firmino, a minha coxa gostosa como a Mena, picante, mas saborosa, onde fica, ensina-me a dizê-lo, dá-me las palavras e lo entendimiento, dá-me lo, dá-me lo a mim

2.

Telma sai de Belas Artes e vai almoçar ao “Roscas” com o Luís, o Braga, a Renata, a Chã, a Iveta e a Liene. Telma fala pouco e vai sentindo a conversa esbatida, como se a estivesse escutando desde longe, em Cuba. Telma não fica para o café e despede-se apressada, embora às terças não tenha aulas de tarde. Telma caminha até São Bento e apanha o 500 rumo à Foz. Telma sai em Lordelo do Ouro e caminha até junto do anjo da marginal. Telma remexe na pasta, tira o bloco de papel e graffiti vermelho. Telma recorta pedaços de papel de forma orgânica, como se o polegar e o indicador empunhassem a lua, como se aquelas formas tivessem saído da boca de Ana Mendieta. Telma cola pedaços de papel ao anjo, dotando-o de asas mansas sobre lençóis garridos, dos amantes, asas brotando como silvas, asas silvestres, veredas. Telma cria a silhueta do anjo com graffiti vermelho, uma silhueta aérea, espontânea, perene, respingando nas asas de papel, de pedaços de papel, uma silhueta que dura até ao fim da lata, um momento com sentido
Telma é interrompida por uma senhora. A D. Etérea. A menina não pode fazer isto. Telma escuta-a desde longe, em Cuba, voz abafada, indistinta, Telma reporta-se a Cuba, liga-se a Ana Mendieta, a silhueta que a tem cativa. A menina não pode fazer isto. Menina, saia daí. Menina, diga alguma coisa.
Telma quebrantou-se e sossegou-se. Telma guardou a lata vazia num saco selado que tirou da mochila. Telma viu o mundo do lado de fora e chorou um punhado de lágrimas que lhe lavaram a alma. Telma olhou para a D. Etérea, sorriu mostrando um canino afiado em quarto-minguante e teve apenas isto a dizer:
- Mendieta-te

3.

- Um anjo, D. Etérea…?

De joelhos, plantado na marginal.
Que impressão me mete a cara do anjo, afligem-me as estátuas, uma pessoa olha à cautela e vai e demora-se um bocado a mais e a pedra dá por nós e devolve a atenção. O que isso me assusta, é que depois não tenho mão em mim. Lá venho eu, descansada com as sacas da mercearia, a ouvir os meus botões, e quando dou fé já estou de olhos postos no anjo, uma cara branca tão branca que se vê logo que não é como a gente, olhos a quem faltam olhos, lábios mais duros que dentes. Se mantivesse a mesma cara como devia, tudo bem, mas não, olha para nós como a gente olha para a gente. Como a gente olha para a gente

- Se pudesse seleccionar somente um episódio do dia de hoje para a posteridade, a escolha recairia sobre essa aparente personificação da estátua?

Não, uma miúda, dez reis de gente, com uma bola prateada no nariz, olhos carregados de fumo e saia de ciganita, um metro e uma gilette, a miúda, pele branca de fantasma, cabelos compridos, toda furada nas orelhas… Mas como essa há muitas, o que mais me marcou é a semelhança com a mulher que sempre em noites de finados, em noites de fugida, à beira-rio, percorrendo as margens do Douro que aqui se finda, é um olhar vazado de lágrimas, um calcorrear felino pelas rochas doentes de algas, um tom sem nome mas primo do preto, uma aspereza sem nome mas prima da malagueta. Deus me valha, faz-me lembrar a Moura que aqui mirou pela última vez, decepada às mãos de Ramiro, a Moura que já foi a folha solta bailando ao vento, foi raio de sol no firmamento

- Mas foi apenas a aparência da jovem, a subsequente associação às divagações da sua mente tolhida pela demência e uma ténue ligação a uma alegada lenda composta por uma série de episódios que culminaram num suposto crime passional e de cariz potencialmente xenófobo que lhe chamaram a atenção?

Não, a miúda estava a libertar o anjo, a desmanchar-lhe a silhueta com um spray encarnado, a libertá-lo com um spray muito forte, soltava uma língua de dragão blasfema, derramando sobre si mesma pólen silente ao contrário, das asas das costas, aqui onde o Rio beija o Mar e o Céu beija a Terra, a raça da miúda, não pude suportar que sobre si derramasse as graças da água doce, o desplante da moça, como se a vida fosse a silhueta efémera dum anjo, como se pudesse dançar em contratempo, fora do relógio do mundo, apenas por traçar a aura dum pedaço de pedra, somente por fazer um anjo voar em contratempo, fora do relógio do mundo. A lata, o desplante da miúda, nós aqui de sacas de compras na mão, escutando os botões, e ela toda gaiteira, fulgindo, trocando longos cabelos morridos por rebentos de feijoca e dedos descarnados de sangue por grilos de Agosto, na costa alentejana, as asas acamadas nas dunas nocturnas como se só ela e as estrelas

- Detecto um tom de ressentimento, D. Etérea? E talvez até uma pontinha de inveja? Seria de supor que a sua intervenção no sentido de deter o acto de vandalismo tivesse sido motivada exclusivamente pelo dever cívico de protecção do património regional, um valor louvável e que deverá ser partilhado por todos e por cada um de nós, cidadãos desta nação que deu novos mundos ao mundo.

O senhor jornalista detecte o que quiser que o que eu faço ou deixo de fazer não lhe diz respeito nem a si nem a ninguém

- Peço imensa desculpa, não a tencionava melindrar. Se voltar a cometer um acto de perfídia igual ou superior a este, prometo-lhe que consumirei 33 cl de desentupidor de canos.

Valha-me Deus, homem, Jesus do Céu, que exagerado que você me saiu

- A D. Etérea quer deixar alguma reflexão final?

A garota só me disse uma única palavra, antes de pegar na trouxa e ir à vida dela. Queria impedi-la, mas como, se ela estava fora do relógio do mundo, com pólen derramando sobre si, silente?
A garota só me disse única palavra, disse-me assim, veja lá, não lembra ao diabo nem ao anjo que antes enraizado aqui na marginal, mas agora em estratosferas estrambólicas, a miúda só me disse:
- “Mendieta-te”

- Neologismo esse que representa uma alusão clara a Ana Mendieta, artista plástica cubano-americana (18/11/1948 – 08/09/1985), cuja arte performativa autobiográfica é caracterizada por uma forte componente feminista e a uma ligação física e espiritual com a terra. Estaria ela a urgir à D. Etérea que assumisse uma postura de vida mais semelhante à da escultora em questão, cuja morte e as circunstâncias que a rodearam ainda hoje permanecem envoltas em polémica?

O que ela me quis dizer sei eu bem, mas não o entendi pelo que as palavras significam, porque não conheço essa senhora nem preciso de conhecer. Compreendi o que queria dizer pelo que as palavras em nós desarranjam e desarrumam, pelo que em nós provocam a Queda do Império Romano do Oriente

- D. Etérea, desconhecia-lhe esse lado críptico. Por favor, expanda essa fascinante consideração que se torna ainda mais surpreendente vinda da boca de uma mulher-a-dias com a antiga 4.ª classe que perdeu o marido no Ultramar e cujo único filho está emigrado na Suíça.

Não explico coisíssima nenhuma, você é um malcriado

- Perdão, depreendo que tenha cometido outra indelicadeza. Diria que foi dum grau igual, inferior ou superior à ofensa anterior? Preciso de saber se devo ou não consumir 33 cl de desentupidor de canos.

Vá para a Mendieta que o pariu

4.

Sempre preferi desenhar e pintar a escrever, sempre preferi mostrar cá fora o que está dentro, muito melhor que as calças justas das palavras
Isto que te lo digo é traduzido pelo contorno das letras, pela pintinha de um i, pelo rebuliço de um h, pelo cerco de um f. Pela mancha gráfica, pelos parágrafos, pelo espaço, pelas quebras, pelos acrósticos acidentais, por uma vírgula mais lontana

Isto que te lo digo é em poucas palavras, não dizem nada e não, não vale a pena alongar-me. Oxalá as compreendas não pelo que elas significam, mas pelo que em ti arranjarem e arrumarem, pela selva que urdirem

Isto que te lo digo é simples. É o roçar da minha asa na tua face. Sei que duvidarás quando a sentires, sei que o relógio do mundo cai igualmente sobre os justos e os injustos. Por saber tudo isso, não te peço demasiado nem nos gasto em palavras. Só falo do roçar da minha asa na tua face, da impressão que restar, da silhueta de centenas de pardais, do número de cabelos que da tua cabeça brotam, esse número tatuado na minha coxa picante, mas saborosa

Isto que te lo queria mesmo dizer era liberta um anjo e libertar-te-ás de la Llorona, mas como sei que não entenderás, não lo digo, não digo mais nada, fica a impressão do roçar da minha asa na tua face, fica o que de mim em ti restar, Firmino, acuérdate de mi

Siempre tuya,

Mena

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